Saberes, territorialidade e cultura: A história, o samba-chula e o trabalho na Comunidade quilombola do Corcovado, Palmeiras-BA, uma pesquisa sociológica
Ana Júlia Sateles Vieira, graduanda em bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Sergipe
Palmeiras, Bahia 2021
APRESENTAÇÃO
O presente trabalho surge como pesquisa investigativa,
etnográfica e bibliográfica realizada na comunidade do Corcovado em Palmeiras,
Bahia, com o intuito de registrar a história da comunidade e como se dispuseram
os mecanismos de organização no quilombo desde sua formação até os dias atuais,
através das entrevistas com os mestres da cultura popular e lideranças da
comunidade.
Este artigo se propõe a rememorar os saberes tradicionais e culturais, como o
samba chula, o reisado e artesanato e quais as práticas esquecidas, sem
desconsiderar os desafios e entraves percorridos pela comunidade tradicional no
aspecto de territorialidade, reconhecimento e legislação que assegure os
direitos desses povos. Para tanto, buscou-se analisar quais as potencialidades que as famílias possuem em
seu repertório e quais podem ser desenvolvidas. Por fim, mas não menos
significativo, tratamos de apontar caminhos diante das próprias trajetórias que
a comunidade tem construído e desenvolvido com o projeto com as práticas de
cuidado e saberes tradicionais, a fim de averiguar a aplicação de direitos
educacionais, como o Decreto 4.887/2003 e Lei 10.639/2003 valorizando os
saberes e práticas que são transmitidas de geração em geração.
Este trabalho é parte integrante do Projeto de
Desenvolvimento do Território Quilombo do Corcovado.
O projeto tem apoio
financeiro do Governo do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e do
Centro de Culturas Populares e Identitárias - CCPI (Programa Aldir Blanc Bahia)
via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do
Ministério do Turismo, Governo Federal.
1.2
Objetivos
1.3 Metodologia
3.Potencialidades
de territorialidade e reconhecimento
4.Samba
chula, reisado e jarê
5.Trabalho,
educação e quilombo
7.Conclusão
8.Anexos
Palavras-chave: Quilombo; Saberes tradicionais; Cultura popular; Etnografia; Territorialidade; Samba chula.
1. INTRODUÇÃO
Portela (2017) aponta que a Chapada
Diamantina é composta por cerca de setenta quilombos por toda sua região, sendo
o Corcovado uma dessas comunidades negras camponesas, composta por mestres da
cultura popular e lideranças que seguem a vida trabalhando na terra e tendo
como lavrador a profissão tradicional das famílias que vivem no território
quilombola.
“Embora a visão dominante da Chapada priorize as belezas
naturais, a região é um repositório de quilombos e comunidades rurais negras, a
Chapada Diamantina é um território negro, o que nos permite afirmar que seu
diamante é negro, seu principal tesouro são as comunidades rurais negras e
quilombolas nele incrustadas.” (PORTELA, 2017, p.15)
Esta pesquisa tem como justificativa a essencial promoção da cultura e desenvolvimento territorial negados historicamente à população negra e indígena desde a colonização brasileira, mais especificamente os povos tradicionais.
Diante dos dados que são
apresentados pelo IBGE de 2018, os negros representam 55,8 % da população.
Quando se fala em escolaridade os negros têm uma baixa porcentagem de nível
superior e médio completo. Quem possui a maior porcentagem de nível superior
completo são pessoas não negras. O percentual entre a população preta ou parda de 18 a 24 anos de idade
que estudava cursando ensino superior era de 55,6%, enquanto o percentual de
brancos da mesma faixa etária era de 78,8%. Na porcentagem de
desocupados, os negros representam 64% do total.
Dito isto, o presente artigo detém
relevância política, econômica e social, registrando, pesquisando, mapeando e promovendo ações de
formação, educação e executando direitos de políticas públicas que constam na
legislação 10.639 para atuação de ensino da cultura afro brasileira, o decreto
4.883/03 e artigo 68 da Constituição brasileira que defendem a territorialidade
e regulação que garantem os direitos
educacionais quilombolas.
No campo, temos a condição efetiva de
comunidades quilombolas que se estabeleceram ao longo dos anos como resistência
e cuidado dos negros que fugiam e se organizavam coletivamente no período
escravocrata, dando origem aos quilombos que até hoje expressam grande cultura
e potencialidade de percepções e concepções de modos organizacionais que fazem
manutenção desses povos, tanto culturalmente, quanto no aspecto econômico,
educacional e de saúde.
É há quilômetros de distância dos
centros das cidades que o território da Chapada apresenta a cultura tradicional
expressada nos quilombos que demanda um longo caminho de estrada de terra e
difícil acesso. “O quilombismo se revelou como fator mobilizador do povo
afro-brasileiro por seu apelo psicossocial, com raízes na história, cultura e
vivência dos afro-brasileiros.” (LACERDA; SILVA, 2017. p. 50)
A organização do quilombo Corcovado é fruto do trabalho na terra, plantação de alimentos orgânicos que são vendidos nas feiras da sede da cidade de Palmeiras e no Vale do Capão. A produção de farinha, graças ao plantio da mandioca, além da produção artesanal, resulta em produtos que somam a renda das famílias no quilombo.
No Brasil, o quilombo marcou sua presença durante todo o período escravista e existiu praticamente em toda a extensão do território nacional. À medida que o escravismo aparecia e se espraiava nacionalmente, a sua negação também surgia como sintoma da antinomia básica desse tipo de sociedade. (MOURA, 1993, p.13).
Este Projeto de Desenvolvimento do
Território Quilombo de Corcovado promove a rememoração cultural (oficinas de
chula, formação histórica da comunidade), registro dos saberes tradicionais
(pesquisa sociológica, análise sociodemográfica e filme curta-metragem) e
formações educacionais (oficinas de fotografia, redes sociais, informática
básica, ferramentas Google, samba chula e artesanato em palha e cipó) a partir
das potências que as famílias da comunidade já detém e das potências que
contribuem para o desenvolvimento do território do quilombo de Corcovado.
De acordo com Moura (1993)
estabeleceram-se sete tipos de organizações quilombolas, mas estas sempre
permeadas pelo vínculo com trabalho no campo. Eram elas agrícolas, que estavam
por toda parte no Brasil: os extrativistas, estes na região do Amazonas onde
sua subsistência eram as drogas do sertão; os mercantis que obtinham de povos
indígenas, drogas para serem comercializadas; os mineradores, comuns em Minas
Gerais, Goiás, Mato Grosso e Bahia; os pastoris, que eram quilombolas que
criavam gado em terras desapropriadas e desocupadas; quilombos de serviços, os
que saíam de seu território para trabalhar nos centros urbanos; e, por fim, os
predatórios, quilombos de todas as partes do país que se organizavam e
subsistiam através de saqueamentos contra brancos.
Como dito acima, a agricultura
sempre esteve presente no histórico de formações quilombolas, já que quilombo
se configura primordialmente como comunidades negras rurais ou camponesas. A
sua economia e subsistência provinha (e provém até hoje) dos recursos que estas
comunidades quilombolas detinham, das matérias primas e ferramentas que
dispunham em seu território.
No Corcovado, a produção agrícola e
o artesanato são práticas tradicionais que fazem a subsistência das quinze
famílias que compõem o território, sendo, a chula e o reisado, as expressivas
práticas promovendo a manutenção da cultura afro-brasileira existente nesta
comunidade.
Em todas as duas formas, o Reisado é essencialmente um
teatro nômade, peregrinal, processional, ambulante, uma grande narrativa
desenvolvida por um grupo de brincantes, sem começo ou fim, na busca
interminável da utopia que, entre suas várias traduções, tanto pode ser lida
como o Divino (no caso dos Reis Magos), quanto como a “Terra Sem Males” dos
índios brasileiros. Daí poder traduzir-se como uma caminhada, que tem um sentido,
mas não uma rota determinada, pois pode mudar ao sabor dos ventos ou de outras
circunstâncias, as mais diversas. ( BARROSO, 2008, p.1)
Apesar das negligências históricas
que promoveram extrema vulnerabilidade e inacessibilidade de recursos,
direitos, saúde e educação para gerações e gerações familiares, as comunidades
quilombolas são patrimônio imaterial da cultura viva da diáspora africana e
cultura afro-brasileira. São elas que transmitem para filhos e netos o saber
medicinal holístico, quem detém uma linhagem direta com lutadores pela terra e
sobrevivência num sistema onde a condição de existência era explorada e
subjugada.
OBJETIVOS
●
Recuperar
o histórico de formação da Comunidade do Corcovado traçando uma linha
histórica;
●
Registrar
como se organizavam as primeiras famílias que chegaram no Quilombo;
●
Captar
como as principais ferramentas de territorialidade - a chula, o artesanato (Arte Visual) e a
sabedoria culinária - foram mantenedoras do fortalecimento e resistência da
Comunidade (captando integralmente a saúde, o trabalho e a cultura);
●
Captar
os elementos culturais que permanecem na comunidade, quais estão se perdendo e
porquê;
●
Obter
dados sociodemográficos que caracterizem a comunidade
●
Registrar
a comunidade acerca da quantidade de famílias, formação escolar, condições
sanitárias, gênero, faixa etária, renda, etc.
METODOLOGIA
O método de pesquisa sociológica
será atividade etnográfica, descritiva (visita ao campo de pesquisa Corcovado);
Observação direta participante;
Entrevistas qualitativas semiestruturadas
dos mestres e jovens lideranças do Corcovado; Análise de dados históricos da
Comunidade; Referências bibliográficas.
Para a etnografia, foram feitas cerca de dez visitas a campo para
observação direta, anotação no diário de campo de como foi o dia na Comunidade
com foco nos objetivos propostos.
Observou-se desde o caminho percorrido para chegar na Comunidade (para
chegar a ela passamos pelo lixão da cidade), até como se relacionam e se
organizam as famílias. Quais as condições sanitárias e de acesso a água e luz
na Comunidade. Se a saúde é uma potencialidade ou uma falta na Comunidade.
Nas entrevistas qualitativas, foram entrevistados seis mestres mais
antigos da comunidade: Seu José, Seu Joaquim, Seu Salvador, Dona Cleonice, Dona
Ergina, Dona Adelita, com o objetivo de traçar a linha do tempo e como se
organizam socialmente. Também foram entrevistadas lideranças quilombolas:
Vilma, Milena, Dinha, Nildinho e jovens da comunidade: Rozeane, Daniela,
Rivaldo e Jenifer. Serão registradas através do recurso audiovisual, vídeo
(MP4) e aúdio (MP3).
A análise de dados
refere-se à busca em mídias digitais e físicas como: documentos históricos,
escrituras e registros contratuais, matérias jornalísticas, livros, internet,
além da aplicação dos cinquenta e cinco (55) questionários sócio demográficos
por toda a comunidade a fim de mapear a quantidade de famílias, condições
sanitárias, educacionais, de renda, faixa etária e gênero.
Foram utilizadas cerca de quinze referências bibliográficas sobre quilombo, patrimônio cultural e
imaterial, antropologia e territorialidade que melhor compreendem as
especificidades da pesquisa sobre a importância do desenvolvimento territorial
de comunidades quilombolas que historicamente formam o nosso país e resistem
por séculos, integrando saúde, cultura e organização social.
2.
FORMAÇÃO HISTÓRICA
O município de Palmeiras localiza-se
no centro do estado da Bahia, no sertão marcado pela caatinga, com morros
chapados que constituem uma das vistas mais belas do país que cercam a cidade.
De acordo com o censo do IBGE 2010, sua população é de 9.071 habitantes,
composta por quatro comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Cultural
Palmares: Fundão, Serra Negra, Tejuco e Corcovado.
A história do Corcovado se inicia na
segunda metade do século XX. Juvêncio Almeida Pina, negociante, fazendeiro e
proprietário das terras do Corcovado repassa parte de suas terras para João
Mangueira e Isalino. É João Mangueira e sua companheira Laudemira quem inicia o
processo de territorialidade e cultura na futura comunidade. João Mangueira e
Laudemira saíram do Carmona, localidade rural de Palmeiras e se instalaram no
Corcovado iniciando, em meados da década de 1940, os cultivos na terra, a
chula, o reisado e práticas religiosas. Neste período de tempo encontram-se
apenas os mestres e sambadores da chula Alzira (já falecida), João Mangueira
(falecido) e Laudemira.
.
Depois de alguns anos, em 1956, Francisco José da Silva, Maria José da Silva e
os filhos se mudam para Corcovado. Francisco José da Silva, falecido rezador,
benzedor e erveiro, é o primeiro das gerações familiares que ocupam até hoje a
comunidade a migrar da Serra Negra e permanecer no território do Corcovado.
Tio
dos mestres populares Joaquim e Cleonice e pai dos sambadores Salvador e
Adelita, Francisco adquiriu um terreno no território do Corcovado que
pertenciam a João Mangueira, o que na época correspondia a duas tarefas e meia
(ou 70 braços), segundo conta Seu Salvador, quando perguntado sobre as primeiras
pessoas a ocuparem o território.
“Foi
João Mangueira. O primeiro que comprou lá foi João Mangueira, depois nós fomo
pra lá. Aí meu pai comprou um pedaço de terra lá e ‘nóis’ foi pra lá, nossa
família. Eu tinha um ano só. Lá só tinha duas casas. Uma era de João Mangueira
e outra de Alzira. E nós ‘ficamo’ lá até hoje, mas naquele tempo era muita
‘dificulidade”. (Trecho da entrevista de Salvador)
Seu
Joaquim veio logo depois de seu tio Francisco, comprou duas tarefas, mas só
alguns anos depois, em 1967, oficializou a compra, como consta em escritura.
Até então, desde a infância seu José e seu Joaquim eram levados pelo pai para
trabalhar nas redondezas da Serra Negra, onde nasceram. Já conheciam João
Mangueira, que os ajudava dando trabalho.
“[...] eu não sou
nascido e criado aqui. Eu nasci lá no Fundão, perto do Tejuco. E então meu tio
veio ‘premeiro’ e depois puxou nóis pra aqui, neste tempo minha mãe era viva,
meu pai já tinha morrido.” (Trecho da
entrevista de Joaquim Damacena)
Em
1955, no mesmo ano em que Francisco José da Silva se muda com os filhos e Maria
José, sua esposa, para Corcovado, João Mangueira e Francisco fixam um Cruzeiro
no alto da serra. Esse cruzeiro passou a ser símbolo de práticas religiosas,
onde as famílias rezam pelos antepassados e visitam em datas como páscoa e
semana santa, até os dias de hoje.
Foto: Acervo do Projeto |
O
processo de formação do Corcovado se deu com muito trabalho, migrações para São
Paulo em busca de emprego, cultivo e plantio na terra, ao mesmo tempo em que
João Mangueira e Laudemira ensinavam os ainda jovens Joaquim, José, Cleonice,
Adelita e demais pessoas que se interessavam a cantar e tocar a chula, levando
os para peregrinar em janeiro pelos povoados vizinhos com o reisado,
transmitindo os saberes tradicionais do samba chula, jarê e reisado.
O termo quilombo passou a assumir um novo significado a
partir da Constituição Federal de 1988 (art. 68) (Brasil, 1988), quando foi
reconhecida a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos
que estivessem ocupando suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (LACERDA; SILVA, 2018, p.301)
Em dezembro de 2008 o Corcovado foi
reconhecido e certificado como comunidade quilombola pela Fundação Cultural
Palmares, o que lhe confere direitos de acesso à terra, educação e saúde dentro
da própria comunidade, mas infelizmente a prática não condiz com a teoria.
Os
processos de integração e cultura foram desacelerados e interrompidos pela
morte de João Mangueira em 2005 e ainda mais desafiadores pela falta de
políticas públicas que promovessem o desenvolvimento do território. A escassez
da água marcou fortemente a trajetória das famílias tinham que caminhar no
mínimo quatro quilômetros por dia até a Baixa Funda, localidade mais próxima da
comunidade com acesso a um poço de onde transportavam em baldes na cabeça para
suprir suas necessidades.
Desde
sua formação da comunidade até a segunda década dos anos 2000, a Baixa Funda
constituiu-se na única fonte de abastecimento intermitente dos quilombolas, que
eram obrigados a carregar água com o auxílio de animais de carga ou em baldes
que equilibravam nas próprias cabeças.
As
poucas tentativas de cavar poços no Corcovado fracassaram. Tanto que o Sistema
de Abastecimento de Água do Corcovado (SAA Corcovado), que passou a bombear
água de poço artesiano para a comunidade, somente foi implantado em 2015 no
povoado de Julião, situado a 3km de distância. Dois anos antes haviam sido
implantadas as primeiras cisternas para consumo humano. Ainda assim, até o
presente momento, a água para consumo humano não é própria para ingerir, pois
contém ferrugem e toxinas. Por esse motivo, os oito núcleos familiares que
constituem a comunidade só utilizam a água do SAA para lavar roupa, louça e
higiene pessoal. Água para ingerir e cozinhar somente aquela extraída das
cisternas.
3. POTENCIALIDADES DE
TERRITORIALIDADE E RECONHECIMENTO
As territorialidades quilombolas são
uma garantia muito recente considerando o histórico das questões agrária e
quilombola brasileiras. A estes sujeitos foi negada/inibida a possibilidade de
acesso à terra no fim do regime escravista brasileiro por meio da Lei de Terras
e, somente quase um século e meio após a lei abolicionista, reconhecendo a
necessidade de uma postura cognoscitiva e redistributiva por parte do Estado em
virtude da violação de direitos ocorrida no período escravista, essas
territorialidades foram asseguradas pelo direito nacional, no artigo 68 dos
dispositivos constitucionais transitórios da Constituição democrática de 1988.
A resistência a esse sistema
escravocrata no Brasil teve na formação dos quilombos uma de suas principais
estratégias. Muito mais que espaço para abrigar escravizados fugidos, os
quilombos se constituíram ao longo do tempo em territórios de sobrevivência
física e cultural da presença e dos modos de vida africano no Brasil. (LACERDA;
SILVA, 2018, p.295)
O desenvolvimento do capitalismo se
deu em detrimento da conservação de territórios de povos originários e
tradicionais. Ainda hoje, dentro da própria constituição federal de 1988 que
protege e regulariza muitos direitos e acesso para os grupos referidos, é onde
se faz a burocracia cominada em favor dos latifundiários e empresas de
eucalipto, celulose e mineração, entre outras, que são inimigos históricos dos
povos tradicionais em põem em risco seu território, sua manutenção, sua
cultura, sua vida.
Temos como exemplo disso a
privatização das terras públicas com o pretexto de ser uma regulação fundiária,
implementado na Lei 11.952/2009, visando titular 67 milhões de hectares na
Amazônia (LEITE, 2016, p.39) fragilizando direitos territoriais e a redução de
áreas protegidas, que foi uma medida instituída em 2012 como Medida Provisória
nº 558. Eis uma articulação jurídica para reduzir unidades de conservação,
favorecendo a construção de hidrelétricas em território indígena. Em 2015, em
uma comunidade quilombola no Espírito Santo foram reduzidas quatro áreas
descontínuas pelo próprio INCRA para empresas de eucalipto e produção de
celulose.
Em contrapartida, o lento e
conveniente processo jurídico e burocrático, como aponta Almeida Alfredo
(2016), reconhece esses procedimentos de regulamentação de reservas indígenas e
comunidades quilombolas, ribeirinhas, etc.
Outro
instrumento “protecionista”, que deve ser analisado de maneira mais
aprofundada, e que aparece explicitamente mencionado no Decreto nº 7.957, de 12
de março de 2013, como “proteção”, refere-se à “regulamentação da atuação das
Forças Armadas na proteção ambiental” (Brasil, 2013, n.p.). Tal medida contém o
risco de militarização das práticas que convergem para o licenciamento
ambiental. (ALMEIDA, 2016, p.45)
Portanto, a imagem do Estado
enquanto paternalista, que protege os grupos historicamente violentados, cai
por terra com a “regulamentação” do INCRA em 2008 e suas instruções normativas
extremamente burocratizadas que dificultam a titulação das terras para CQs. O
Estado assume posição pseudo conciliatória, promovendo através de órgãos que se
dizem protetores de territórios e comunidades tradicionais negociações e
mordaças reformistas. O racismo ambiental tem um impacto de ataque implícito,
explícito e simbólico em busca do lucro a grupos que sofrem os impactos
negativos do crescimento econômico.
O Brasil em 2015 tinha 343 conflitos
ambientais, onde 33% envolviam indígenas e 21,50% envolviam quilombolas. O
principal impacto é devido ao uso e ocupação do território onde acontecem 65%
dos conflitos. Há irregularidades de 40% na demarcação de território
tradicional, de acordo com Leite (2016). Essas tensões e conflitos causam
processo de adoecimentos e mortes dentro das comunidades.
O discurso desenvolvimentista operou, e ainda opera, como
uma nuvem de fumaça para encobrir as ações predatórias de agentes e
instituições privadas, que agem inclusive por meio das instituições
estatais[...] É neste sentido que o quilombo território sempre retorna, como
espaço vívido, ressignificado como o lugar seguro, lugar possível, lugar
viável, lugar proibido, lugar santo, lugar querido, lugar distante, lugar
reencontrado, lugar perdido. (LEITE, 2016, p.300)
Temos casos de ataques diretos a
comunidades tradicionais e indígenas, estas que fazem manutenção do maior meio
de exploração do capitalismo: os recursos naturais. Não à toa, tem-se conflitos
atuais e marcantes entre indígenas e madeireiros, fazendeiros, mineiros e etc,
além de construções de barragens que expulsam comunidades tradicionais e
quilombolas da sua terra, influenciando materialmente na retirada de direitos e
genocídio desses povos.
Para Leite (2016) há uma
considerável linha de pesquisa e atuação no reconhecimento da importância da
demarcação de territórios acontecidas no Sul do Brasil, observando os efeitos
da Constituição de 1988 sobre os avanços, desafios e futuro na garantia de
territórios quilombolas.
Em uma perspectiva antropológica,
ela analisa quais fatores demarcam a necessidade de se olhar para o passado
para compreender a atualidade, e os quilombos tem um grande histórico de lutas
políticas libertárias e rebeliões organizadas pelos negros na história da
diáspora africana no Brasil. Não podendo nos esquecer das lutas
pan-africanistas que decorreram uma série de coordenadas e lideranças de
resistência que devem servir de aporte para os movimentos sociais atuais e
lideranças.
A articulação de autores como Abdias
Nascimento, Franz Fanon, Du Bois, Marcus Garvey, entre outros no século XX foi
essencial para a denúncia e repúdio da política que se instaura desde período
colonial do negro como inferior, irracional e animalizado, tendo justificativas
até mesmo na formação do racismo científico que foi acentuado no século XIX.
Esses autores trouxeram o debate de justiça e direito não apenas exclusivo do
grupo hegemônico dominante, passando a abranger a concepção de igualdade e
expondo as noções racializadas que ocorrem mundialmente.
“Decerto
que as comunidades quilombolas não permaneceram estagnadas, se transformaram
com o tempo passando ainda a promover espaços culturais, mas também tornando
quilombo como toda comunidade negra camponesa que agrupe descendentes de
escravizados vivendo cultura de subsistência, onde as manifestações culturais
têm forte vínculo com o passado, de acordo com a Associação Brasileira de
Antropologia”. ( LACERDA, 2017, p.49).
Lacerda (2017) tem uma contribuição
fundamental no que tange à concepção de saúde para a população negra,
demonstrando quais as práticas de saúde ocorrem nas comunidades quilombolas de
Sergipe, onde os membros da comunidade tem um papel fundamental de cuidado e
práticas de saúde efetuadas pelas rezadeiras, benzedeiros, parteiras da própria
comunidade, pois estes, através da utilização de ervas localmente encontradas
por erveiros que tratam inflamações e doenças, ou as benzedeiras que atuam
forma de lidar com os problemas enfrentados pelos moradores, as parteiras que
realizaram os partos das mulheres das comunidades, já que o acesso a hospital e
clínicas era precário, trazendo uma concepção holística integradora, porque tem
os saberes tradicionais transmitidos de geração e geração, principalmente
através da oralidade e relação com a natureza, demonstrando que é importante
considerar a sabedoria desses povos tradicionais para atuar positivamente na
saúde da população negra.
Ainda sobre os aspectos de
territorialidade que a comunidade dispõe, investiga-se nesta pesquisa quais os
agentes de saúde, como benzedor, erveiro ou rezador, que são potências
holísticas de saúde. Dentre os entrevistados, tanto seu Joaquim, como Dona
Cleonice indicaram que este papel na comunidade pertence a Seu José.
“O pai de
Milena mesmo é bom para benzer. O pai de Seu Salvador, meu tio, era benzedor e
era bom. Não tá vivo, mas tem o nome vivo. [...] Quando tá com o corpo pesado,
aquela sonolência, assim você pede a pessoa para benzer, a gente pega um ramo e
benze mesmo” (Trecho da entrevista de Cleonice)
Hoje
em dia seu José não se identifica e não se assume publicamente como benzedor.
Dinha, sobrinha de seu José e mestre do artesanato sustentável, afirma que essa
resistência se deve ao encargo pesado que é assumir a benção, que implica em
uma grande demanda. Daí ele preferiu a discrição.
No Corcovado, mestre Salvador relata
que exercia essas funções para ajudar seu pai dentro de casa por conta da
dificuldade econômica, que plantar sempre esteve em sua trajetória. A
oralidade, contar histórias de sua trajetória e família, transmitir saberes de
geração em geração contando com o que guarda a memória, cantar e criar versos
de samba é uma potencialidade da comunidade que é formada pela cultura afro
brasileira, exprimida nas comunidades quilombolas.
“Era ganhando um dinheiro trabalhando, ganhando dinheiro.
[...] Aí nós fazia roça. Fazia não, nóis faz. ‘Nóis’ faz até hoje, nós ‘planta’
mandioca, planta fava, milho, mas com os anos muito ruins, assim… ruim nada,
fraco de chuva, sabe? Aí a gente não tem muita produção, né? E aí eu vendia
lenha. Eu vinha aqui ó, no comércio aqui ó (aponta para a praça em Palmeiras)
em cima do animal. Aí eu vendia lenha aqui ó, no animal, para 'mode' comprar um
sal, rapadura. [...]Todo dia eu vinha cá, voltava. No outro dia eu
vinha...vender lenha.” (Trecho da entrevista de Seu Salvador, Janeiro de 2021)
A antropologia social vai estudar a
cultura, buscando explicar, através das manifestações e práticas, a sagacidade
filosófica da diáspora africana e tanto saber dos povos tradicionais para se
organizarem socialmente, mas que não dispunham de possibilidades para aplicar o
que se pensava na escrita. Observando os aspectos de territorialidade e
potências que no território dispõe, acompanhamos mestra Dinha, sábia professora
do artesanato sustentável da comunidade, que desde criança, até hoje, trança a
palha que aprendeu com as mais velhas, produzindo bisaques (bocapios), cestas,
bolsas, decorações diversas com a palha.
O artesanato é presente não só na
vida de Dinha, como também da tesoureira da associação quilombola Milena
Damacena, Rozeane, a filha de Dinha e várias outras mulheres da comunidade que
descem para a loja do Corcovado que fica localizada na sede da cidade para
produzir as peças artesanais e vender. É uma realidade das mulheres da
comunidade, desde sua infância:
“Ah,
desde pequenininha, limpando a trança para minha mãe, fazendo bisaque. Minha
mãe trança e eu venho limpando a trança para ela costurar. Eu costuro a alça
para ela fazer o bisaque, faço um pouco de tudo." (Trecho da entrevista de
Rozeane)
Quando perguntada se acha que é importante a prática do
artesanato sustentável, Rozeane responde:
"Muito, passa de geração para geração, né? Nem sempre os mestres vão estar ali ensinando a gente, a gente já passa para os mais novos. Já é tradição, meus avós, tataravós faziam e a gente vai continuando. É importante reunir todo mundo.” (Trecho da entrevista de Rozeane)
4.O SAMBA-CHULA, REISADO E O JARÊ
(Foto: acervo do projeto. Primeiro
encontro após o início do projeto com os mestres da chula.)
O samba-chula, manifestação cultural
presente na comunidade quilombola do Corcovado, está enquadrado no ritmo de
samba, popularmente denominado de samba de roda que tem sua origem no
Brasil e vai abranger as variedades de
samba no Brasil, seja na cidade ou no campo. O samba é derivado do semba, ritmo angolano surgido nas
décadas de 1950 e 1960, mas discute-se também a possibilidade de que o samba
tenha sido formado dos escravizados nos navios negreiros e que seria o ritual feito pelos negros libertos.
A chula teria, de acordo com autores
do século XIX, conotação pejorativa, como algo xucro e grosseiro. Muito se
discute sobre a origem da Chula. Tem uma forte presença em Cachoeira e Santo
Amaro, além de outros municípios do recôncavo na Bahia, mas é originalmente
trazida da África, pelos escravizados no século XVIII. E com a chula veio
também a forte crença e fé em santos como São Cosme, Santo Antônio e São Roque.
Isso explicaria a ligação entre a chula e a religião que expressam os mestres
do Corcovado, como Dona Cleonice conta com sabedoria e propriedade as
trajetórias que faziam antigamente cantando a chula pelos povoados da Chapada
Diamantina, em entrevista:
“Sei um bocado de chula, verso. Da hora que você cantar a
Chula você tem que ter um verso para jogar e o outro responde a Chula. Não é só
a Chula não, você tem que jogar um verso também. Agora as outras respondem na
Chula. Nem que não sai direito, mas vamos desenrolando aí”. (Trecho da
entrevista de Cleonice Damacena)
Conceição, L. (2018) aponta que a
chula, além dos batuques, prato e passos miúdos de um samba interiorano, é uma
forma de contar história que expressa as relações de trabalho, a vida dura de
dias sem água, secas que impactavam na roça e no destino das famílias que
formaram o território tradicional e na cultura que se constituiu, a chula faz a
manutenção da memória e ancestralidade dos que praticam.
A chula tornou-se uma potencialidade
no Corcovado, tanto de cultura, memória e resistência, como de saúde e
territorialidade. Caracteriza-se pelo samba dançado no miudinho, tocado na
viola por seu Salvador, prato por seu José e pandeiro com seu Joaquim. No
comando da voz estão as mulheres mestres que formaram o território, Dona
Adelita, Dona Cleonice e Dona Ergina. Hoje a chula é, dentro da categoria de
samba de rodas, Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco desde
2005.
Através da chula se sabe a
geografia, isso porque cantavam sobre seus dias de ida e vinda em busca de
trabalho, migravam a pé ou em cima de um animal como jegue, burro e cavalo,
como revelado em entrevista por seu Salvador, um dos mestres da comunidade,
quando questionado se a chula sempre esteve presente em sua vida:
“Sempre
esteve. Eu estava com 12 anos, foi meu padrinho que me ensinou. Meu padrinho
João Mangueira. Eu estava com 12 anos e aí eu ficava o dia inteiro e aí ele me
ensinou a tocar a viola, sabe? Aì eu fui treinando e treinando, depois ele
faleceu e aí nóis ficou lá. Mas nunca esqueci, lá dentro do Corcovado não tem
um que sabe tocar a viola: é só eu. [...]12 anos, não esqueço não.” (Trecho da
entrevista de Salvador)
Sobre o reisado, seu Salvador
afirma:
“Tem
o Reis. Quando meu padrinho era vivo, nóis ia no Matão, primeiro Lajedinho,
Taquari, Serra Negra, Capim, tudo nóis andava. Quando era dia 6 de janeiro aí
era festa lá na casa do meu padrinho, ia todo mundo. Para festejar lá.” (Trecho
da entrevista de Salvador)
O samba de roda é um ritmo oriundo
da cultura africana que tem sua reformulação afrobrasileira no recôncavo baiano.
O samba de roda está na periferia, na cidade e no campo. Nas comunidades
quilombolas o samba chula é esse ritmo mutante, caracterizado pela sua base
diaspórica com a viola, o prato e as cantigas desafiadas pelos sambadores que
cantam sua luta pela terra, o trabalho no campo e a vida difícil.
O samba chula, conhecido como samba santamarense, samba
amarrado, samba de parada, samba de verso, samba de viola entre outros, da
grande região da cana 12, é talvez o estilo de samba que revela maior
proximidade com a tradição oral, porque não rompeu o vínculo com a ruralidade e
tampouco perdeu a função na religiosidade popular, manifestada através da festa
para os caboclos, do caruru e da reza para os santos. (DORING, 2013, p.154)
São minoria os repertórios da antiga
chula cantados atualmente, muito se guarda na memória dos mais velhos
cantadores de chula o vasto repertório aprendido com gerações anteriores de
mestre. Assim foi com Dona Adelita, Dona Cleonice, seu Joaquim, seu Salvador e seu José, que aprenderam muito com João
Mangueira e Laudelina, quando eram jovens. Hoje é mais difícil recordar as
letras das músicas e passar para os sobrinhos e netos, pois eles não tiveram a
experiência de conviver com mestres mais velhos e ainda detém pouco interesse,
o que faz com que não dominem o referencial auditivo e vocal que os mestres
detêm. É uma realidade que não acontece só no Corcovado, e sim com muitos
ritmos de culturas regionais e populares.
Em Maragogipe, recôncavo baiano, a
chula foi modernizada pelos mais jovens líderes vocais, mas a base não se
perdeu, continuam cantando também a letra da antiga chula, preservando sua
origem, mas mudando a forma de se cantar, o que acaba por descaracterizar o
ritmo. Muitos jovens de samba de roda de Maragogipe acabam por menosprezar ou
diminuir a sabedoria dos mestres mais velhos da chula, tendo como ritmo
ultrapassado ou simplório, fato que acontece segundo Doring (2013)
influenciados pela mídia e a expansão da indústria da música como pagode e axé.
A leitura de Doring (2013) foi
importante para se compreender como se deu o processo de valorização do samba
de roda e o seu entendimento enquanto patrimônio imaterial que preserva uma
cultura afro-brasileira. Cultura afro-brasileira essa que é praticada em sua
por comunidades tradicionais e que estas correm um risco de apagamento e
invisibilidade da cultura popular que na comunidade se faz manutenção.
Decerto que o reconhecimento pela
UNESCO e a primeira Mostra do Samba de Roda do Recôncavo, marco territorial de
resistência desse ritmo contribuíram para que se enxergasse nas cantadeiras e
sambadores mais do que lugar de preservação de memória afro-brasileira e
passassem a ver artistas, criadores e serviço cultural a ser explorado.
Doring (2013) faz uma crítica aos
governos que exploraram a cultura popular mas no modo de espetacularização e
folclorização dessa cultura que não beneficia os guardiões artísticos do samba
de roda, na verdade desde o governo Vargas essa cultura tem sido “levada à
tona”, mas de modo tortuoso, como mencionado acima. Na Bahia, o movimento
carlismo, oriundo das práticas do político Antônio Carlos Magalhães contribuiu
ainda mais com essa espetacularização, expropriação e ao mesmo tempo pouco
retorno para os próprios artistas populares.
Carvalho (2004) aponta como se deu a
noção de patrimônio e como esta concepção está conectada à instituição do
imperialismo no mundo. No século XIX, em museus da Alemanha, Inglaterra e
França já se tinha a noção de patrimônio cultural, mas era uma noção mundial,
que se aplicava aos monumentos históricos e documentos recolhidos de vários
países e levados para estes museus na Europa.
Foi somente com o surgimento da
gravação, recurso audiovisual, que surgiu no final do século XIX que se
promoveu o entendimento de que os registros feitos de festa, dança e ritos de
povos vivos também eram um patrimônio cultural e que agora poderiam ser
registrados em filmes e gravações que fariam parte do arquivo nacional. Nesse
sentido de formar arquivos audiovisuais serem recolhidos como arquivos
nacionais surgiram na América Latina na primeira metade do século XX, de acordo
com Carvalho (2004).
Em seu artigo, Domenici (2011)
apresenta, através da antropologia teatral, análise do corpo de sambadores e
sambadoras tanto no seu momento de dança e canto da chula, como em seus
momentos cotidianos. Os momentos do dia a dia, as circunstâncias do dia a dia
exprimem a formação cultural dos mestres da chula. São esses comportamentos que
serão remontados em cena na performance
do samba. A antropologia teatral estuda os movimentos e comportamentos dos
grupos tradicionais que praticam o samba de roda e depois os recriam
cenicamente.
Apesar de não ser a abordagem e
análise utilizada para esta pesquisa, a antropologia da performance ou do
teatro contribui para a compreensão de como se formam essas manifestações
culturais e ainda valoriza as práticas dançantes dos mestres que a reproduzem.
Estudar as performances das manifestações culturais, principalmente as que se
reproduzem nos quilombos da Chapada Diamantina fortalece o arcabouço teórico e
conhecimento sobre o corpo nas danças de manifestações populares, que ainda são
poucos.
Por exemplo, é comum que as mulheres
carregam grandes bacias na cabeça com água que buscam no rio, com roupas que
lavam no rio que demandam uma habilidade do equilíbrio, e são, essas mesmas
mulheres, que cantam e sambam a chula se equilibrando no balançar ágil e firme
dos pés, muitas vezes com algum elemento na cabeça que demonstre a sua
experiência e habilidade na dança.
Equilíbrio não é do tipo estático, como aquele que se
observa nos adágios do balé. Ao contrário, esse equilíbrio é feito de maneira
dinâmica, pois todo o conjunto se movimenta, em micromovimentos — não se trata
de um corpo duro, enrijecido, não articulado; ao contrário, observa-se uma
“soltura” de todas as articulações provocada por micromovimentos que dão a
impressão de um “remelexo” geral. Compreender como se dá o envolvimento
articulado do corpo todo é fundamental, pois é óbvio que não se trata de um
movimento totalmente solto e descoordenado; pelo contrário, as partes do corpo
são envolvidas de forma finamente coordenada e controlada, de maneira a gerar
oposições que contrabalançam a situação do equilíbrio precário. (DOMENICI,
2011, p.3)
O samba chula, o reisado e demais
aspectos de eventos religiosos constituem espaço de territorialidade, onde as
vivências e organizações das famílias permearam pelos processos de festas,
comemorações e muita chula, integrando a comunidade enquanto tradicional.
“É
importante os mais jovens aprenderem a chula, porque na falta dos mais velhos
quem tem continuar, agora o interesse é deles. Agora com os instrumentos aí tem
condição de ensaiar, pra não ficar parado.” (Trecho da entrevista de Seu
Salvador)
O jarê, prática religiosa de matriz africana
manifestada exclusivamente na Chapada Diamantina, conhecida como o candomblé de
caboclos, era muito presente no Corcovado, mas com a morte de João Mangueira e
Laudemira essa prática se perdeu. Os mestres populares afirmam ter deixado essa
prática esquecida por conta do encargo pesado que seria continuar, mas, mais do
que isso, o sincretismo religioso e apagamento das religiões de matrizes
africanas na história contribuem para que não haja a manutenção dessas
religiões.
“A chula foi aprendida com eles. Com esses veteranos antigos
aí. A chula, ela não faz parte do jarê não, ela faz parte é do acompanhamento
do reis, depois dos reis vem a chula. As mulheres que ‘saber’ jogar o verso.
[...] Foi aprendido com eles aqui. Eu acompanhava os reis, saía na vizinhança,
nos povoados cantando, arrecadava um pouquinho de dinheiro para Santos Reis,
que os moradores de cada casa doava e quando era no dia 6 (de janeiro) fazia a
festinha.” (Trecho da entrevista de Seu Joaquim).
A pesquisa investigativa aqui
presente, expõe a inegável atuação das práticas de manifestações culturais e
sua contribuição na formação do território do Corcovado, desde seus primeiros
anos de formação, até a atualidade fez parte da vida de todos que passaram pela
comunidade. Os jovens, apesar das
influências midiáticas, têm consciência da importância do ritmo chula para as
futuras gerações. Quando questionado sobre a relevância das manifestações
culturais para a comunidade, um deles responde:
“Eu
acho importante sim, por causa que [...] em vez de ficar no pessoal mais antigo
ir passando e passando para ser relembrado. Não pode ser esquecido, é uma
história. [...] Eu acho importante,
principalmente a chula. Conta a história do lugar, do sofrimento. Tem o pó de
palha né, é uma pequena estrofe sobre a história da gente naquele tempo era uma
época sofrida e aí inventaram essa música “Pó de palha”:
“Deusulivre
se o pó de palha acabar,
pó
de palha deu alta
de
5 passou para 10
o
que será da pobreza
se
o pó de palha acabar”
(Trecho da entrevista de Rivaldo Damacena)
5. TRABALHO, EDUCAÇÃO E QUILOMBO
As relações de trabalho para as
famílias do território quilombola foi marcada por uma dura trajetória, em que as condições
sociais desfavoráveis implicaram na necessidade de constante migração, seja
internamente, na zona rural das cidades da Chapada Diamantina, como
externamente, nos grandes centros urbanos da região Sudeste, maior polo de
atração de retirantes nordestinos a partir da década de 1950. A busca por
oportunidades de trabalho na cidade e no campo marcou a vida dos mestres
populares. Quando questionado sobre seu
trabalho, Seu José Damacena, de 83 anos, lembra dos lugares onde viveu com seu
pai:
“[...]quando
eu saí da Serra Negra eu era criança que eu nem lembro, fui lá pro Fundão,
depois fui pro Pati, depois foi lá pro Campestre, nós “vortemo” para Sarginha,
em cima da Lavrinha. Depois dali nós vortemo pro Fundão. Nóis não parava
assim.” (Trecho da entrevista de seu José Damacena)
E,
quando questionado sobre o porquê se mudavam, Seu José continua:
“Uai,
porque o tempo era duro e os filhos tinha que trabalhar para dar os sustento os
filho e não podia sair pra trabalhar longe e deixar os filhos cá para trás que
sofriam mesmo, né? Então quando ele saía ele panhava tudo. Aonde ele tivesse
ganhando dinheiro ou achava um serviço firme, ai ele ficava dois três meses.”
(Trecho da entrevista de seu José Damacena)
Parte da pesquisa etnográfica foi
concebida através das entrevistas qualitativas, ou seja, entrevistas abertas e
estruturadas com perguntas que tinham como critérios uma análise mais completa
da formação da comunidade. Analisou-se não só o aspecto cultural, de
territorialidade, de saúde e aspecto histórico, como também o aspecto
educacional e como este esteve presente pelas gerações que permaneceram no
Corcovado.
No primeiro capítulo do presente
trabalho, sobre a formação histórica dos agentes formadores do quilombo,
aponta-se a ausência da formação escolar já no primeiro grau da educação básica
em relação aos mestres da cultura popular, a primeira geração familiar da
comunidade. Suas trajetórias foram marcadas pela necessidade de trabalhar na
terra desde a infância para ajudar a família, migrar em busca de melhores
condições de trabalho e moradia, o que interrompeu a prioridade de ir à escola,
não deixando de levar em consideração que até hoje não existe escola na
comunidade quilombola e para ter acesso a esse direito as famílias sempre
tiveram que andar quilômetros até a escola mais próxima. Já a segunda geração foi
à escola e concluiu o primeiro grau, porém não foi uma batalha fácil de travar.
“Antes de refletir sobre a educação,
é importante ressaltar como a precária condição de vida já derrota o estudante
negro, tornando-o um ser acabrunhado diante da vida, o achatamento das
perspectivas faz com que a sobrevivência material assuma centralidade nos
sonhos, no desejo de uma vida melhor ou, pelo menos, possível.” (PORTELA, 2017,
p. 31)
Como já exposto anteriormente, a história de formação do Brasil reverbera até hoje,
impactando vidas e caminhadas difíceis que acarretam em traumas e lacunas na
formação escolar quilombola. A escola deixa de ser um lugar para se descobrir e
exercitar suas habilidades, se torna lugar de dor, angústia, desconforto e
aversão.
Portela (2017) disserta a luta
travada em Seabra, na Chapada Diamantina, para a inclusão dos alunos
quilombolas no processo seletivo para disputar as vagas de discentes no
Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia da Bahia - Campus Seabra.
Além da fronteira material imposta pelo racismo, na qual às vezes a condição
mínima de existência (comida) ainda está em disputa, há também uma expropriação
simbólica para a qual a escola desempenha um papel fundamental. Infelizmente,
ainda temos uma escola, a despeito das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que despreza
a contribuição das matrizes silenciadas e subjugadas para a formação da nação
brasileira: indígena e negra, o que acarreta um fosso entre a cosmologia destes
sujeitos e o parâmetro civilizatório europeu de uma escola que insiste no
branco como sujeito universal. (PORTELA, 2017, p.89)
O racismo que estes alunos
encontraram no curso do pré-IFBA e nas escolas públicas da cidade onde eram
diariamente desacreditados, desestimulados e intimidados não era nada velado,
mas sim gritado. Diante disto, é inegável que as discriminações sofridas por
Milena Damacena e Vilma Novais não eram fatos isolados e não se limitavam à
cidade de Palmeiras.
O decreto 4.887/2003 que garante, teoricamente, os direitos
educacionais quilombolas e sua valorização da cultura afro brasileira na lei
10.639 não são suficientes para que existam escolas dentro da própria
comunidade e não dão conta da realidade discriminatória e segregatória dos
quilombolas nas escolas. Desde o trajeto a pé de mais de três quilômetros do
Corcovado até o Julião, localidade mais próxima, para enfim pegar o transporte
público e serem levados a uma escola sucateada situada a 25km de distância do
Corcovado, até os olhares, comentários e agressões dos colegas e professores,
era um caminho longo, cansativo e de
fácil desejo de desistência.
“[...] estudei na Escola Municipal rural do Julião e escola
municipal de primeiro grau do Rio Preto. Concluí o ensino médio em 2009.”
(Milena Damacena, em entrevista)
“Qual era o meio de transporte para
chegar no Rio Preto?” (pergunta da pesquisadora)
"Era uma C10, aberta, a gente andava na pista e não era
carro fechado não.”
Vilma completa:
“Com uma lona, cobria com uma lama por cima, a proteção era
uma lona.”
Quando perguntado sobre as condições do transporte, Vilma diz “não era nem
novo, nem velho, era mais ou menos”, mas logo em seguida a prima revela:
"A marcha do carro ficava encavalando no meio da pista,
nós ficava todo mundo com medo. Tinha hora que nós chegava na escola já ia dar
duas horas.” “pra entrar, que horas era a
hora certa?” “pra entrar, 1h15.”
É neste momento da entrevista que
Milena e Vilma me descrevem como era a sua rotina para a escola. Saíam do
corcovado cerca de 11 horas da manhã, fazendo o trajeto de três quilômetros a
pé até a localidade mais próxima, o Julião. De lá pegavam, por volta das 12
horas, o transporte público e percorriam mais nove quilômetros até a sede da
cidade por uma estrada de terra acidentada, que passa pelo lixão da cidade. Na
sede ficam as melhores escolas públicas da cidade. Mas as crianças da terceira
geração de moradores do Corcovado não podiam estudar nesses escolas. Passavam
pela sede e ainda percorriam mais um trajeto de 13 km até o Colégio Municipal
Primeiro Grau do Rio Preto, que ficava próximo a uma pedreira em atividade na
época, o que obrigava os professores a manterem os alunos trancados nas salas
de aula durante as explosões.
Investigando o porquê do trajeto tão
longo e dificultoso, de alunos quilombolas cruzando a BA e saindo de sua
própria cidade com acesso à escola municipal e correndo riscos diários na
estrada e na própria escola, questionei as primas sobre porque estudavam em uma
escola tão longe, e a resposta confirma o racismo e seus mecanismos de funcionamento
e impacto na vida dos povos tradicionais. “Kabenquele Munanga é também incisivo
contra o argumento pseudoacadêmico ao reafirmar que todos sabemos que o
conteúdo da raça é social e político. O autor reflete que nada muda para nós
pelo fato do biólogo molecular ou o geneticista humano afirmarem a não
existência da raça. Importa-nos o fato de que ela existe na cabeça dos racistas
e de suas vítimas e de que as relações são mediadas pelo fenótipo e não pelos
genes.” (PORTELA, 2017, p.24).
“Inté hoje a gente não sabe o motivo. Se era por rejeição de
não matricular a gente aqui nas escolas, se era porque não tinha vaga.” (Trecho
da entrevista de Vilma Damacena)
Milena completa:
“Segundo a secretaria da educação, era porque não tinha
vaga. Que aí vinha a comunidade Corcovado, Serra Negra e Matão para estudar no
Rio Preto.” (Trecho da entrevista de
Vilma Damacena)
“muito
longe, né?”
Pergunto eu repetindo a indagação da distância:
“e estranho” (Trecho da entrevista de Vilma Novaes)
A oportunidade para pessoas negras
nos espaços públicos é escassa e comprometida com o preconceito e discriminação
racial que estas pessoas sofrem ao adentrar esses espaços. Fanon (2008) reflete
o complexo de inferioridade do negro não é uma vontade inerente, mas uma tomada
consciente da realidade econômica e social a qual pertence. Para Milena, Vilma
e outros sujeitos identificados enquanto quilombolas, muitas vezes, a escola é
lugar de reafirmação da negação de sua existência e de sua identidade. É espaço
de desconforto, desencaixe e desestímulo, como relata Milena Damacena em
entrevista:
“Lá nessa escola mesmo eu já sofri bullying dos colegas.
Quando a gente chegava na porta da escola já ficava dizendo “chegou às defuntas
fedorentas” o apelido que as colegas colocavam era defunta fedorenta. Aí, teve
uma professora que eu não levei a minha atividade pronta, que ela passou um
trabalho de inglês. Eu não entendia nada de inglês, ninguém na minha comunidade
sabia inglês, não tinha internet pra mim pesquisar inglês, então levei a atividade
sem fazer, chegou lá, falei com a professora que eu não tinha feito [...] aí a
professora me chamou de burra[...]”
A escola, para crianças quilombolas,
torna-se espaço de negação de sujeitos e inferiorização intelectual. O racismo
atua tão profundamente, que provoca mudanças externas e internas naquele que é
violentado. Muitas adolescentes alisavam o cabelo com ferro quente para
amenizar a negritude fenotípica que seus rostos e cabelos negros expressavam no
ambiente escolar.
6.RESULTADOS
DA PESQUISA
Tem-se atualmente cerca de cinquenta
e cinco pessoas no território quilombola, de acordo com a pesquisa realizada no
dia 30 de março de 2021 no intuito de mapear e captar dados quantitativos
sociodemográficos de caracterização da comunidade.
Em termos contemporâneos, os povos quilombolas enfrentam uma
dura realidade. Seus territórios e espaços de moradia, via de regra,
encontram-se em lugares desprovidos de infraestrutura urbana, como saneamento
básico, água encanada e serviços de saúde; os quilombolas desempenham as
atividades mais desgastantes e sem a garantia de direitos trabalhistas; em
alguns casos, a dependência de pessoas não quilombolas para sobreviver os
coloca em uma relação de dominação que beira uma espécie de escravidão moderna.
Seus recursos naturais, principalmente a água, são disputados e poluídos por
pessoas do entorno de seus territórios, em total desrespeito ao uso, prático e
simbólico, que a coletividade faz deles. Reservas e recursos naturais como
árvores e fontes são cortadas e aterradas sem levar em consideração que os
mesmos podem integrar o estoque do patrimônio religioso de matriz africana de
tais grupos. A terra que compõe o território das comunidades é esbulhada por
pessoas que, em alguns casos, sequer viveram nela dando início a sérias
situações de conflito. (OLIVEIRA, O; MULLER, B. 2016. p.322)
Os resultados da pesquisa aqui
expostos, são oriundos, tanto da etnografia realizada em visitas a comunidade e
observação das práticas integrativas e o processo de rememoração promovido pelo
projeto, como das entrevistas qualitativas com jovens e lideranças e a
aplicação de questionários sociodemográficos.
Na comunidade do Corcovado, sem
levar em consideração parte das famílias que emigraram para o sudeste e região
da Chapada Diamantina, somam-se atualmente 48,1% de mulheres e 51,9% homens
(Ver anexo 2). A maior parte é composta por jovens de 20 a 40 anos de idade que
representam 27,8% da população, seguidos por jovens entre 10 e 20 anos que são
25,9%. Lideranças entre 40 e 60 anos somam 15,2% do total (Ver anexo 3).
Entre 0 e 10 anos tem-se uma porcentagem de
13% que dizem respeito às crianças da comunidade, estas, ficaram sem acesso à
escola e educação durante maior parte do período da pandemia do novo
coronavírus. Sem aulas presenciais nem acesso à internet para realizar
aulas virtuais, as crianças e
adolescentes da comunidade passaram a receber cadernos de atividades da
secretaria de educação que não suprem o conteúdo perdido e não cumprem com o
que lhes é assegurado pela constituição, seja pelo decreto 4.883/2003 ou a
legislação 10.639/2003 sobre direitos
educacionais quilombolas e ensino da cultura afro-brasileira em todos os
níveis. Ainda que estivessem tendo aula online, assistir às aulas não seria
possível, já que apenas uma residência das doze dispostas no território
quilombola possui acesso à internet, ainda assim com qualidade limitada.
A faixa etária de pessoas entre 60 e
80 anos configura 13% da população local, e mestres de 80 a 100 anos somam 6,5%
do total. Também investigou-se o estado civil dos moradores da comunidade, onde
encontrou se: 61,1% é solteiro; 14,8% casado; 11,1% viúvo; 11,1% vive junto com
seu companheiro e, apenas, 1,9% é separado. (Ver anexo 4)
Sobre a escolaridade, a maior parte
dos moradores são analfabetos, contabilizando crianças, adultos e idosos. São
24,1% de analfabetos; 13,0% sabem ler e escrever; 5, 6% possuem o fundamental I
incompleto; 18,5% possuem o ensino fundamental I completo; 13,0% possuem o
ensino fundamental II incompleto; 7,4% o ensino fundamental II completo;
3,7% representam as pessoas com o ensino
médio incompleto; 14, 8% possuem o ensino médio
completo (Ver anexo 5). Desde a sua fundação, em 1945, até o momento da
realização desta pesquisa, em 2021, nenhum dos moradores do Corcovado conseguiu
chegar à universidade.
Na pesquisa sobre ocupação e
profissão, 77,8% são lavradores, enquanto 22,2 % são estudantes ou
pensionistas, mas, mesmo estes que estão estudando ou recebem aposentadoria, se
auto afirmam enquanto lavradores. (Ver anexo 6)
O dado mais surpreendente,
negativamente, dessa pesquisa, além da escolaridade, foi em relação à renda per
capita dos moradores: 70,4% vivem com total até meio salário mínimo; 16,7% com
meio a um salário mínimo; 5,6% vivem com 1 salário mínimo e meio; 5,6 %
declararam viver da renda do bolsa família e 1,9% possui uma renda per capita
de 2 salários mínimos e meio (Ver anexo 7). Esses dados expressam concretamente
a desigualdade social e precariedade que alguns grupos detém, mesmo diante dos
esforços e trabalho desenvolvido para se manterem.
Sem acesso à educação de qualidade, nem
formação adequada, os quilombolas dificilmente conseguem uma boa oportunidade
de trabalho e nem encontram em sua comunidade oportunidade para trabalhar com
algo que não seja a lavoura. Partir de suas casas em busca de melhoria de vida
ainda é uma realidade que não ficou pra trás, marcada apenas na memória de seus
antepassados, como contam os mestres populares Joaquim e Salvador nas primeiras
páginas deste trabalho.
Camponês,
sambador, mestre da cultura popular, seu Joaquim relata sobre as condições de
saneamento básico da Comunidade, desde o acesso a água, luz, internet e coleta
de lixo.
“Chegou a luz de uns doze anos pra cá. Nessa faixa[...]em
todas as casas. Internet é só aqui. Se uma pessoa precisa, pede a permissão,
recebe a senha.” (Trecho da entrevista de Joaquim)
Sobre
a coleta de lixo, Joaquim relata:
“Moça, coleta de lixo aqui a gente sempre usa, agora o que é
de plástico… mesmo que não seja certo, a gente queima, eu sempre queimo. Porque
não apodrece. Não vem caminhão de lixo aqui.” (Trecho da entrevista de Joaquim
Damacena)
Fazem
a utilização da água da chuva, utilizam a água da chuva para cozinhar e beber e
uso geral das residências.
"Uma coisa que nós nunca foi beneficiado foi banheiro,
a ser aprovado pela CAR, se tem um banheiro, um quebra galho é feito por nós,
por recurso próprio. Por causa da água que não é suficiente a CAR não aprova. A
maioria tem pelo lado de fora, e nós nunca pudemos ter pela CAR porque não
tinha água suficiente[...] Nós ainda pretende receber o recurso deles.” (Trecho
da entrevista de Joaquim Damacena)
Alijada
do direito à educação e do abastecimento de água de qualidade, a comunidade não
possui acesso à coleta de lixo e rede de esgoto, o que demonstra total
negligência dos órgãos governamentais, além da ausência de Unidades Básicas de
Saúde, conferindo uma negação dos direitos estabelecidos pela constituição.
A
despeito de tantas omissões dos poderes públicos, o Corcovado resiste. Cada vez
mais devido a inclusão da diversidade cultural brasileira na constituição e
verificação antropológica de profissionais da ciências sociais, o quilombo
detém hoje uma abrangência que inclui a pluralidade de formação de povos
tradicionais que herdam valores e práticas que guardam herança cultural
afro-brasileira.
Sua história com o samba é a
contribuição de sua herança angolana, africana e cria em território brasileiro
a chula da Bahia. No passado, a chula foi entoada pelas vozes dos já falecidos
João Mangueira, Laudelina Vianna, Alzira, tradição seguida pelos atuais mestres
da cultura popular Adelita, Cleonice, Joaquim, Salvador, José e Ergina. Juntos,
eles perpetuam o patrimônio imaterial da cultura afro-brasileira.
Temos, ainda, dentro dessas práticas
holísticas, a utilização de ervas medicinais como ferramenta de cura para
doenças físicas, mentais e espirituais. A agência de atores sociais
protagonizando essa manutenção da saúde é imprescindível na territorialidade do
quilombo. Francisco José da Silva, pai de Salvador, Adelita, Domingas e
Valdete, um dos erveiros e benzedores para quem, junto com seu José Damacena,
recorriam para banhos, bênçãos e consultas de ingestão de chás.
O olhar afrocentrado no estudo das
relações entre desenvolvimento e ambiente em comunidades quilombolas no Brasil
perpassa pela necessidade de alinhar epistemologia e análise dos fenômenos numa
perspectiva emancipatória. O fomento ao protagonismo/agência dos
afrodescendentes na descrição das suas experiências deve ter como referência
de análise os valores civilizatórios
afro-brasileiros. (LACERDA; SILVA, 2018, p.306)
Isso lhes confere uma sabedoria
tradicional permeada pela proximidade que o quilombola tem com sua terra, com o
meio ambiente e os recursos naturais a seu redor como dispositivos de cuidado,
cura, alimentação e subsistência.
Uma
categoria ontológica e epistemológica no pensamento africano é ubuntu. Um
conceito que nos aproxima da compreensão das relações entre as pessoas e com a
natureza presente nas comunidades afro-brasileiras. Uma delas é a ideia de
comunidade, segundo a qual as pessoas dependem de outras pessoas para serem
pessoas, pois a noção central do ubuntu é “Eu sou, porque nós somos”. É
nitidamente perceptível a diferença entre esse conceito e a noção europeia
sobre a natureza humana, que tem a liberdade como valor fundamental e, concebe,
assim, com primazia a existência do poder de escolha dos indivíduos sobre suas
ações. Já para o ethos do ubuntu, em oposição à valorização ocidental do
indivíduo, não é o valor individual que ganha ênfase, uma pessoa não só é uma
pessoa por meio de outras pessoas, mas também por meio de todos os seres do
universo. Cuidar “do outro”, portanto, também implica o cuidado para com o meio
ambiente e os seres-não humanos. (LACERDA; SILVA, 2018, p.304-305)
A dança, o canto, tocar instrumentos
e compor música integram práticas de saúde. Através da festa, do artesanato, da
agricultura, do trabalho e das sabedorias tradicionais, as práticas de saúde
são fortalecidas pelas famílias que compõe o território. A pesquisa reforça a
relevância que o projeto de desenvolvimento tem, não só para com a comunidade,
mas também para valorizar a cultura afro-brasileira no nosso país. O Corcovado
se mostrou um território de riquezas e valores culturais que devem ser
registrados, praticados e assegurados.
CONCLUSÃO
As práticas holísticas que fazem
manutenção da saúde e resistência do cuidado, concebidas por Lacerda (2017) são
mapeadas no Corcovado não se atendo aos aspectos físicos de saúde, mas integrativos
como a saúde mental, espiritual e física promovidas pela chula, trabalho na
terra e uso de ervas medicinais no tratamento de doenças.
Desde a luta pelo acesso à água,
mesmo diante de sua escassez e negligência governamental, até sua organização
econômica social geradoras de renda com o trançar do cipó e da palha que
resultam no artesanato, graças aos saberes tradicionais, as famílias do
Corcovado são agentes de resistência e manutenção do próprio território.
Mais do que remeter ao passado e rememorá-lo,
o Corcovado remonta o quilombo hoje. Definitivamente a formação do quilombo de
Corcovado não se deu como se pensava na Carta Constitucional, onde as
comunidades remanescentes de quilombo necessariamente eram formadas por
escravos fugidos (LEITE, 2016, p.292). A comunidade se formou através da
necessidade de famílias negras rurais de se organizarem em um território, e,
com isso, produziram práticas holísticas e integrativas que constituem sua
manutenção.
Mapear, investigar e registrar as práticas e potencialidades tradicionais é um dever, demonstrando que o quilombola deve ocupar todos os espaços que lhes foram negados historicamente. A pesquisa contribui com a luta antirracista e classista que esses grupos enfrentam e sempre irão enfrentar. Reafirma, ainda, a importância que Zumbi dos Palmares nos ensina sobre o quilombo e sua força secular. Por fim, valoriza os mestres da cultura popular, que são patrimônio vivo da cultura afro-brasileira e o legado que deixam para as novas gerações.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Oswald. Reisado, um patrimônio da humanidade, Juazeiro do Norte, 2008
CARVALHO, José Jorge de. Metamorfose da tradição performática afro-brasileira: De patrimônio cultural à indústria de entretenimento, Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
CONCEIÇÃO, Lucileide da. Samba Chula. São Francisco do Conde,
2018.
DOMENICI, Eloísa. O corpo no samba chula do litoral norte da Bahia e suas possíveis contribuições para o artista cênico, Porto Alegre, 2011.
DORING, Katharina. Samba de roda: Visibilidade, consumo cultural e estética musical Pontos de interrogação, Alagoinhas, BA, 2013.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008.
GRAEFF, Nina. Comemorando identidades afro-brasileiras através da performance musical, Artelogie, 2013.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25989-pretos-ou-pardos-estao-mais-escolarizados-mas-desigualdade-em-relacao-aos-brancos-permanece#:~:text=Entre%202016%20e%202018%2C%20a,%25%20para%2040%2C3%25.> Acessado em fevereiro de 2021.
LACERDA, Roberto. Territorialidade, Saúde e Meio Ambiente: Conexões, Saberes e Práticas em Comunidades Quilombolas de Sergipe. Sergipe, 2013.
__________________; SILVA, Gicélia. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento em comunidades quilombolas no Brasil, 2018.
LOURENÇO, Sônia Regina. Ações Afirmativas para Estudantes Quilombolas: o processo de criação do Programa de Inclusão de Estudantes Quilombolas (PROINQ) na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Mato Grosso, 2016.
MOURA, Clóvis. Quilombo: resistência ao escravismo, 3ª ed. Ática, São Paulo, 1993.
OLIVEIRA, Osvaldo (org). Direitos quilombolas & dever de Estado em 25 anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro, 2016, p.9-51; 289-324.
PORTELA, Ana Carla. Tabuleiro identitário, o quase do racismo à
brasileira e sua encruzilhada quilombola no IFBA do território de identidade da
Chapada Diamantina, Salvador, 2017.
Anexo 1
QUESTIONÁRIO SOCIODEMOGRÁFICO
Objetivos
⦁ Obter
dados sociodemográficos que caracterizem a comunidade
⦁ Registrar
a comunidade acerca da quantidade de famílias, formação escolar, condições
sanitárias, gênero, faixa etária, renda, etc.
________________________________________________________________
1.Gênero: Masculino ( )
Feminino ( )
_____________________________________________________________
2.Faixa etária:
Entre 0 e 10
anos ( ) Entre 10 e 20 anos: ( )
Entre 20 e
40 anos ( ) Entre Entre 40 e 60 anos( )
Entre 60 e
80 anos: ( ) Entre 80 e 100 anos: ( )
_______________________________________________________________
3.Número de Filhos: ________
______________________________________________________________
4.Estado Civil:
a)Solteiro
( )
b)Casado
( )
c)
Divorciado ( )
d)Divorciado
com companheiro ( )
e)Viúvo
( )
f)Viúvo com
companheiro ( )
g)Vive junto
( )
h)Separado
( )
i)
Outro (
)
________________________________________________________________
5.Escolaridade:
a. Analfabeto(a) ( )
b. Sabe ler e escrever ( )
c. 1º ciclo do ensino fundamental ( )
d. 2º ciclo do ensino fundamental ( )
e. Ensino médio incompleto ( )
f. Ensino médio completo ( )
g. Ensino superior incompleto ( )
__________________________________________________________
6.Profissão:
a)Lavrador
( )
b)Outro
________________________________________
________________________________________________________________
7.Renda:
a) 0 a meio
salário mínimo
b) Meio a 1
salário mínimo
c) 1 salário
mínimo e meio
d)
Outro:_______________________________________
Anexo 2
Anexo 3
Anexo 4
Anexo 5
Anexo 6
Anexo 7
ENTREVISTAS QUALITATIVAS
Entrevistas piloto com as
sambadeiras mestres da chula Dona Ergina e Cleonice sobre a formação da
comunidade e a chula:
De onde é?
Quando veio para Corcovado?
Qual a sua relação com o artesanato?
Há quanto tempo a chula está
presente na sua vida?
Como aprendeu a cantar e dançar
chula?
Com os jovens e lideranças da
comunidade sobre a formação da comunidade:
Nome?
Idade?
Escolaridade? Qual escola estudou?
O que gosta de fazer na comunidade?
Conhece a chula? Como foi o seu
primeiro contato com a chula?
Tem proximidade com o artesanato?
Há um desejo de permanecer na
comunidade ou de partir? Por quê?
Acha importante conhecer e aprender
as cantigas da chula? Por quê?
O que é ser quilombola pra você?
Com Vilma Damacena e Milena
Damacena, sobre a trajetória educacional quilombola e processos de violência:
Em
qual escola você estudou?
Em
que ano você entrou nessa escola?
Por
quanto tempo estudou nela?
Qual
era o meio de transporte?
Há
quantos kms ficava a escola da comunidade?
Por
que estudou numa escola tão longe da cede da cidade?
Como
era sua relação com os outros colegas da escola? E os professores?
Havia
preconceito?
Como
você era tratado ?
Como
você se sentia na escola?
Foi
só a sua geração, senão, quem mais?
Como era a
sua relação com colegas e professores no Colégio Municipal Primeiro Grau do Rio
Preto?
Por qual
motivo eram mandados para uma escola tão distante da comunidade e da sede da
cidade?
Como você
entende o preconceito que viveu na escola?